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Recordar é Viver!

por Asséde Paiva (escrito em setembro, 2011)
(rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.

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Falemos de Chapéu D’Uvas
Parte III...
 
Lenda pessoal

Dizem psicólogos e outros estudiosos da mente humana, que esquecemos as coisas boas que nos acontecem vida afora e lembramos só dos traumas pessoais. Deve ser verdade, porque maus eventos são registrados a ferro e fogo em nosso cérebro, os bons se vão como neblina de outono.

Trago em minha memória acontecimento infernal que se deu quando ainda tinha doze ou treze anos. Morava em Chapéu D’Uvas, (casa da foto), na insegurança da minha adolescência, quando chegou meu tio Jovelino (Jove), com uma boiada do sertão de Divino de Ubá. Com ele veio seu cachorro, Lobo, que tomava conta ferozmente de sua alimária. Ai de quem chegasse perto... E se meu tio dissesse “Inimigo aí!” Lobo pulava no atrevido e o mordia implacavelmente. Por isso, ninguém ousava aproximar da mula, onde quer que ela estivesse amarrada ou solta,mesmo porque a besta (ver foto dos três) era ensinada. Podia ser liberada do cabresto, que permanecia quieta, até que meu tio a cavalgasse outra vez.

Morada do autor
Tio 'Jove' com amigos (o lobo e a mula)

Pois bem, tio Jove vendeu a boiada ao dono da fazenda Sesmaria, próxima de minha casa e ficou um ou dois dias. Ele empreitou, com seu Zequinha, para amansar umas dez mulas. O tio era famoso amansador e ferrador de burro bravo. Ele era petulengro no idioma romani ou dos ciganos. Meu tio buscou os animais e dispôs a partir para sua terra. Ele deixaria, por ora, as bestas no sítio do Azevedo, arrendado ao meu pai. O velho Minga, meu pai, pediu a meu tio Jove que levasse também até o referido sítio, algumas vacas e bezerrinhos. Indicou-me para ajudá-lo nesta travessia. O cachorro Lobo ficaria em casa, porque a partir de Benfica, meu tio pegaria ônibus até Juiz de Fora e de lá o trem da RMV, ramal Leopoldina.

Em manhã de sol quente sem nuvens, saímos para cumprir jornada de uns oito quilômetros. Assim que atravessássemos o arraial Lobo voltaria com o ajudante. Tudo bem até que cruzamos a linha férrea. Continuamos a caminhada pela estrada que margeava a ferrovia. Para nossa desgraça, a locomotiva de um trem de carga bebia água, para encarar a serra da Mantiqueira, na caixa d'água (veja foto). Quando estávamos na altura da igreja de são José, a máquina saciou sua sede, e o ajudante ou foguista retirou a imensa mangueira do tender e jogou-a de volta ao seu cabide. O maquinista avisou da partida, puxando a corda do apito: Piauííííííí. E acelerou. À primeira golfada de vapor, nossos animais apavoraram e deram meia-volta. Correria, gritos, assovios, cachorros latindo. Disparada em sentido contrário ao que queríamos. Esporeei meu cavalo e voltei também, tentando contê-los. Não consegui, eles eram tão mais velozes do que o meu. Volte Ferrute, volte! Clamava meu tio. Não obedeci, havia magnetismo no ar. Moradores às janelas não entendiam o que se passava.. Meu Deus! E o trem acelerando mais e mais. Era a corrida da morte. Que poderia acontecer? Deus me salvou, porque meu arreio desapertou e foi parar no pescoço de meu cavalo. Virou o arreio e despenquei para o chão, onde fiquei estonteado, estatelado, pertinho da casa de dona Liquinha, que correu para me ajudar. Meu cavalo seguiu escoiceando ao vento e se livrando da arriata. Animais e trem porfiavam na velocidade em direção ao pontilhão. Depois o trem parou, com o limpa-trilhos sujo de sangue, à borda da ponte. Um silêncio atroz me envolveu. Caminhamos... Todos os animais morreram, exceto um que perdeu um casco e ficou sangrando entre pedras e águas, lá embaixo. Eu, patético, observava o horror que provoquei com meu açodamento. Nunca mais esqueci este desastre, que foi considerado um acidente, mas no fundo do coração carrego a culpa. Se não tivesse tentado deter a cavalgada, talvez todos escapassem, pois na minha ânsia de salvá-los provoquei mortes.

Lobo não morreu; meu tio viajou de trem, e lobo ficou amarrado a noite inteira. E uivou e uivou. No dia seguinte, logo que foi solto, desapareceu, e dias depois após mais de cem quilômetros, voltou a sua casa em Divino de Ubá (hoje Divinésia).

O burro, que perdeu um dos cascos, não morreu. Tratei-o com imenso carinho dois anos e meio. Ele definhava, pouco a pouco. Um dia, papai levou-o a uma grota e o matou, para desespero de minha mãe que tanto implorou que não fizessse assim. Dizem que a morte deste animal traz atraso de vida, parece que é verdade. Papai nunca mais ‘aprumou’ na vida, mas isto é outra estória. Eu hoje me pergunto: Por que o maquinista não parou? Por que acelerou? Não teria visto? Era um imbecil competindo com seu cavalo de aço? Não sei, não sei!

Papai queria processar a EFCB, mas foi desaconselhado, pois, não havia possibilidade de ganhar a causa.

Obrigado por não me culpar, ninguém me culpou, mas minha consciência, sim.
Não me lamentem, nem tenham pena de mim. Estava escrito: Maktub.

Muitos anos depois... Autor e filho (Alcione)
na ponte sobre o rio Paraibuna, onde se deu o acidente
Antiga caixa d'água de Chapéu D'Uvas,
para abastecimento das locomotivas
publicado no Benficanet em 09/09/2011
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Comentários

Assede Paiva - Volta Redonda - RJ - 04/03/2012
Muito obrigado Jorge!

Jorge Luís de Jesus Mosquéra - Goiânia - Go - 03/03/2012
Realmente é uma viagem no tempo essa foto do autor e filho na ponte sobre o rio Paraibuna, em Chapéu D'Uvas. Na minha infância, na década de 1960, frequentei com meus pais a prainha ao som dos "The Fevers" e tenho registrado na minha mente, até hoje, a mesma cena da fotografia. Um grande abraço ao senhor Asséde.

Assede Paiva - Volta Redonda - RJ - 13/09/2011
Helena! Gostaria de saber o nome de sua tia e prima. Acho que as conheci.

Alexandra e Alcione - Viçosa - MG - 11/09/2011
Foi muito triste o que aconteceu aos animais, mas acredito que Deus conhecia suas boas intenções e o protegeu. Ao conhecer o fato e saber que se salvou do acidente com o cavalo agradeço à Deus, afinal pude conhecer este homem honesto, bom e um pai responsável por sua família. Para mim, é um grande presente ter sua amizade.

Alcione - Viçosa - MG - 11/09/2011
Muito boa a história.

Helena de Paula  - São Paulo - SP - 09/09/2011
É maravilhoso ver cenas do meu passado, nestas águas brinquei e pesquei na minha infância... vou publicar um livro contando sobre minha família pois tenho tantas estórias lindas outras nem tanto tragédias neste mesmo pontilhão que ceifou a vida de uma tia e uma prima. Pena que não tenha fotos fantásticas como estas aí. Meus parabéns e vou continuar te lendo pois estou adorando de verdade! Um abraço!
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