Deus
chamou seus anjos para lhes designar as missões do dia.
Todos esperavam, todos temiam. “Filhos meus, vamos escolher
os que irão a Terra formar novos seres, para minha sempre
eterna grandeza e pela evidência do meu poder criador.”
Os anjinhos ficaram tensos, esperando mais esclarecimentos:
“Para aonde iriam? Que país habitariam? Seriam felizes como
no céu?” Tantas as dúvidas, ficar no céu era muito bom. As
decisões de Deus não são discutíveis, tão-somente cumpridas.
Os anjinhos formavam aquele coro em alegres gorjeios,
entoando salmos e cânticos em louvores ao Altíssimo. E
estavam muito bem assim e bem também quando eram
simplesmente estrelas espalhadas pelo firmamento, luzindo,
piscando, piscando... Sempre temiam o momento da partida
para o imprevisível, o desconhecido. Mas todos os dias, eles
tinham que ouvir novas ordens e cumpri-las. Assim tinha que
ser.
E Deus apontou o dedo indicador para um na multidão de
anjos. Logo, um raio de luz atingiu o escolhido e este
desapareceu. Ele seria transformado em mensageiro da
boa-nova na Terra. Iria levar grande alegria ao lar que lhe
fora designado. Papai ficaria feliz ao saber que sua esposa
estava grávida e ela, feliz porque seria mãe. E eram milhões
de seres felizes, orgulhosos, naquele Planeta Azul, vagando,
rodando pelo infinito cosmo.
E Deus apontou para outro anjo, mas este se esquivou, pois
era serelepe e o raio por ele resvalou, atingindo
inesperadamente outro anjinho, que desapareceu
instantaneamente, indo cumprir a missão: trazer felicidade a
um lar. Deus não ficou nada feliz nem satisfeito com a
peraltice, com o negaceio do anjo escolhido. Ninguém poderia
sequer ousar ou sonhar em desobedecer as Suas ordens. [Em
remotos tempos, um arcanjo, da alta hierarquia angélica, por
soberba, revoltou-se, mas isto fora uma exceção. Deus o
castigara duramente, e sofrera também, pois o revoltoso,
Lúcifer, era o bem-amado, o espalhador de luz ou portador da
luz]. Deus quedou-se pensativo: “Minha criatura mais bela
está no exílio, contudo, no fim dos tempos, ele será
redimido, virá a mim; todos que criei são centelhas do
Criador”.
E Deus, tendo terminado as designações do dia, chamou o anjo
arredio para uma conversa: “Por que fugiste da minha
indicação? O casal que te indiquei seria muito mais feliz
porque adoram filhos, amam família numerosa.” O excelso Pai
parecia zangado.
“Meu Criador, perdão! Perdão! Estou tão feliz no céu que me
assustei por ter que partir Pai! Fiquei com medo, sou
espírito das estrelas, gosto de pular nas suas pontas, de
mergulhar no sol e cutucar as minhas irmãs na Ursa Maior. O
que me espera? Para aonde vou? Como serão meus pais lá?
Quais as dores devo passar? Num momento de suprema dúvida,
preferi ficar, mas seja feita Sua vontade, não a minha”.
E Deus disse: “Meus desígnios são inescrutáveis, sei de
tudo, sou onipotente, onisciente e onipresente, poderia
dizer-te o que te espera, aonde vais, enfim todos os
detalhes de uma vida, mas seria supérfluo, ou melhor,
inconveniente, o bonito do futuro é viajar sem saber o que
acontecerá, mesmo porque se soubesses, não haveria mérito na
tua ida a Terra. Tu te esquivarias das dores previstas, das
privações, e só procurarias gozar das coisas boas. Será
preciso usufruir de bons e maus momentos para se ter alguma
valia, alguma finalidade na tua viagem” E o anjinho
respondeu: “Ó Supremo Mandatário, Altíssimo, Pai
misericordioso, obedeço, hosanas! Mas, aprendi que és
sumamente bom e não queres o sofrimento de Seus filhos, eu
sou seu filho, humilde servo, seja benevolente comigo! A
Terra é muito hostil. Desculpe, o terror está superando
minhas forças. Prefiro mil vezes saltitar nas estrelas”.
E Deus teve pena, o anjinho era muito belo e gracioso. “Meu
filho, sei, afinal sou onisciente, muitas aflições
fustigarão tua alma, teu corpo, tua mente, porém, forçoso é
que vá; muitas alegrias o esperam também. Há uma família que
te quer, vou te dar a oportunidade, a honra de ser nômade,
tal qual meu filho Jesus, foi.”
“Gloria in excelsis Deo! Pai, por favor! Deixai-me ficar por
aqui, estou bem, tenho amigos e o Vale de Lágrimas ou Terra
de Expiação não me agrada. Eu não quero partir! Aqui estou,
aqui ficarei!” Bateu o pezinho, teimosamente. E não era bom
teimar com Deus...
E o Senhor Deus, que tudo pode; até a queda de um fio de
cabelo só se dá por sua vontade, olhou com interesse para
aquela criatura mimosa, bela, suave, refletiu: “Como sou o
superlativo do bem, sumamente bom e justo sei o que espera
este delicioso espírito. Se concordar com ele, estarei
reduzindo sua possibilidade de crescimento pessoal, de
evolução, pois: ‘A cada um segundo suas obras, seus
méritos’, esta é minha Lei maior. Por outro lado, meus dons
não são passíveis de exame dos mortais. Eu Sou o que Sou,
tenho dom da graça, o meu dom preferido. Concedo a benesse a
quem julgo por bem dar, sem critérios ou parâmetros de que o
beneficiado os merece ou não. Será que estou sendo injusto
se deixar este pequeno ficar aqui? Amo a todos igualmente,
mas este menino é muito alegre, está sempre me louvando,
entoando cânticos, tocando a flauta doce, preciso estudar
este caso”.
E assim, o Divino Pai dispensou a presença do adorável anjo
e recolheu-se à Mansão Celestial, para verificar se havia
jurisprudência, Ele sabia que não. Deus cismou, meditou,
pensou e chamou o anjo para uma conversa a sós.
“Meu filho, é forçoso que vás àquela família que te espera e
deseja há muito. Ela vai receber-te com muita alegria; eles
gostam de muitos filhos. E estão tentando te conceber a
anos, minha decisão anterior é irrevogável, é irretratável e
é necessária para manter o equilíbrio cósmico, aquela
questão da flor é um fato...”
“Oh, sapientíssimo Pai! Esta não conheço”, interrompeu o
anjo.
“É a que diz: ‘A queda de uma pétala de rosa perturba a mais
distante estrela’. Por equidade para com outros anjos, vou
te conceder a graça de voltar bem rápido, rapidíssimo.
Aquela família que tanto te espera, já recebeu sua irmãzinha
e agora vai te receber por momentos. Eles verão o menino
lindo, fruto do amor e do meu amor pela humanidade. Ficarás
apenas alguns instantes e depois voltarás a Mim. Mas terás
uma tarefa para o futuro: serás o anjo de guarda de aquele
ser que desceu em teu lugar”.
E o anjo desapareceu num raio de luz. Mas ele era mesmo
gaiteiro, veio brincando, cantando, pelas estrelas, pulando
aqui e acolá e chegou a ficar minutos dependurado na ponta
da lua-crescente. Depois, passou por nuvens, fez chover em
alguns lugares e desceu num raio de prata.
Meses depois veio à luz gêmeos, um casal. Após o banho, em
um tacho com água pura, vinho, flores, ervas e perfumes, o
menino foi levantado em direção à lua, pela avó, que entoou
este cântico:
Lua, lua, luar
Toma teu andar
Leva esta criança
E me ajude a criar
Depois de criada
Torna a me dar
E Lucas, como convém a um anjinho nômade foi embora, partiu
num raio de luar, direto a galopar no cavalo de São Jorge.
Leitor! Olhe bem. Olhe bem a Lua. Se não vires Lucas na
garupa de São Jorge é porque ele está brincando com Julia (a
irmãzinha), seguindo as instruções de Deus... Por isso, ela,
lá na terra, acorda sempre sorrindo.
Este conto foi escrito em homenagem ao nosso netinho Lucas,
que nos iluminou e foi embora, deixando-nos uma tristeza
infinda...
FINIS
Publicado no Benficanet em 26/03/2012
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